As boas vivências são dádivas arquivadas no coração em determinados momentos de nossa vida emergem e nos trazem a lembrança de um tempo que foi bom. Assim diz uma missiva que recebi de alguém que me é deveras caro e que hoje utilizo para subindo o mirante da existência, por-me ao peitoril da sacada de meu Eu para prestar continência de saudade a um tempo que foi bom.
Nesta continência, feita naquela linha divisória tênue que se chama lembrança, a recordação traz a efusão de tempos idos, impregnados de realismo singular que não raro causa aquela bilocação existencial de, estando no presente, vivenciar o passado que se põe faceiro ante os olhos, desfilando com todas as suas cores, perfumes e sabores na avenida da vida sob o cadenciar de um saudosismo que projetado no presente, nutri o desejo de perpetuação do âmago de tempos pretéritos.
Em meio aquela bilocação existencial, contemplo a Matriz de Santo Inácio que dobrando de seus sinos saúda a aurora, desperta a cidade de Pinheiro a qual logo se envolve em atmosfera fúnebre para despedir-se de um tempo que foi bom: um tempo em que no Natal tinha-se a procissão do Menino Jesus e na Semana Santa a do Senhor Morto; tempo em que a Catedral de Pinheiro tinha missa todo santo dia e não apenas de terça-feira a domingo; tempo em que havia a procissão da Virgem de Fátima em maio e de São Sebastião em Janeiro; tempo em que as Missas do Galo e de Passagem de Ano, bem como a vigília pascal eram realizadas bem próximas da meia-noite; tempo em que a fé que transpõe montanhas, fazia o povo vencer a distância e sair em procissão da Igreja de São José, no Fomento, até a Igreja Matriz no dia de “Corpus Christi”; tempo em que a Praça Pe. Newton Pereira tinha a vitalidade do verde das plantas e não a frieza e morbidez do cimento corrido; tempo em que Pe. Almir Lima Silva M.S.C. (Missionário do Sagrado Coração) era pároco e vigário da Igreja Matriz de Santo Inácio de Loyola, Catedral da Diocese de Pinheiro!
Um dia, porém, os fiéis estranharam o fato do padre não ter ido celebrar a missa matinal das seis horas e logo veio a notícia: o padre passará mal no caminho até a igreja, sendo socorrido por um moto-taxista que o levou até o Hospital Antenor Abreu, onde chegou próximo das seis da manhã com sintomas de infarto, vindo a falecer por volta das 6 horas e 22 minutos daquela segunda-feira, 16 de setembro de 2002.
A notícia ecou ligeiro nos quatro cantos da cidade que perplexa chorou com profundo pesar a morte repentina de seu vigário; o prefeito decretara luto oficial de três dias e o Colégio Pinheirense preparara seu salão nobre para velar seu diretor durante todo aquele dia, colocando um lençol preto que ia da fachada do último até o primeiro andar, bem como hasteara seu pavilhão a meio mastro. Ao cair da tarde contingente numeroso de pessoas, entre elas alunos, acompanharam o translado do caixão com o corpo do religioso até a Igreja Matriz, onde ficaria até a tarde do dia seguinte.
Naquele 17 de setembro, ao cair da tarde, a Catedral ficara pequena para a missa de corpo presente do padre defunto. As homenagens numerosas eram tributadas ao homem religioso, ao pinheirense estimado, ao educador incansável, que dirigiu o Colégio Pinheirense até o ultimo sopro de vida. Finda a missa a guarda de Honra da Banda Marcial do referido Colégio retirou o caixão da igreja nos ombros, debaixo de um profundo silêncio, quebrado somente pela cadência lentíssima de batidas de bumbo pelos demais integrantes da banda que, acompanhavam o cortejo, executando sons que se assemelhavam ao pulsar de um coração que desfalece.
A frente do cortejo até o Cemitério Santo Inácio, ia o Senhor Bispo e ao seu lado eu com outros coroinhas e padres que traziam nas mãos as flores deixadas durante todo o dia no velório e, por todo caminho pessoas se colocavam a esquina para ver o caixão conduzido a pulso por autoridades e pelo povo, enquanto um mar de gente se formava da Rodoviária até a Praça Pe. Newton, aumentando a proporção que a marcha prosseguia. Adentrando o corredor principal do campo santo, o cortejo convergiu a esquerda no meio do caminho que vai até a capela, seguindo em direção ao jazigo da família do morto que se acha no fim daquela viela e estando a catacumba aberta, as últimas orações eram feitas pelo padre italiano Nicolau Gizzi M.S.C. e quando o túmulo ia ser fechado, com a voz embargada, Pe. Geraldo Lima Silva, irmão do falecido, recitara três ave-marias, sendo acompanhado pela multidão.
Hoje, passados nove anos daquele ocorrido, a nitidez dos sorrisos largos, a consistência das homilias, a essência da jovialidade, o espírito de vanguarda, tradição e otimismo de Pe. Almir ainda se apresentam em cores vibrantes nas lembranças de quem o conheceu e se aquele tempo bom em que ele era vigário de Pinheiro não é mais possível, ao menos é possível tomá-lo por referência para que outros tempos bons frutifiquem no porvir!
Soldado de auroras, nunca se preocupou com quantidade: celebrava missas com um vigor próprio dos entusiastas não importando se na assembléia tinha apenas um os muitos fiéis, assim como também nas procissões. Homem cheio de conhecimento, humano e divino, vivia dizendo que o dia mais importante da vida do cristão é dia de sua morte, pois nesse dia parte para o encontro definitivo com o Pai.
Terminando esta continência de saudade a um tempo que foi bom, lembrando das palavras do saudoso padre para quem o mar só é imenso e único entre as obras da criação que pode refletir o céu (em suas águas) porque, numa atitude de humildade, se coloca abaixo de todos, só posso dizer uma coisa: Quanta saudade de você Pe. Almir!
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