A CORAGEM DE BATINA.
(Mauricio Gomes Alves, APLAC)
Chega 31 de Julho, dia de Santo Inácio, aniversário de 24 anos do jovem
Newton Ignácio Pereira que aguardava em São Luís, no Seminário Santo
Antônio, o dia da tão esperada ordenação sacerdotal. Em Pinheiro, do
lado de fora da igreja, depois da procissão de Santo Inácio, todos
parabenizavam dona Evarinta que daquela data, apenas alguns dias mais,
ia se tornar mãe de um padre muito inteligente, que destacava-se entre
os seminaristas de sua classe, tanto pelo proceder, como pela oratória
que possuía, dono de uma inteligência aguçada, prática e refinada.
O
Sr. Vicente Freitas de Abreu, orgulhoso de ter sido o professor que
educou o futuro padre – desde quando, ainda menino, veio da fazenda
Realeza, no gama (onde nascera), até antes de sua ida ao seminário –
aproximou-se de dona Evarinta.
- Boa noite dona Evarinta. Parabéns! Não é todo mundo que tem um filho tão erudito e além do mais padre.
- Boa noite seu Vicente. Eu que agradeço pelo senhor, que desemburrou meu Newton. Bom aluno é fruto de um bom professor.
- Dona Evarinta e quando será a ordenação dele como padre?
-
Vai ser no dia do aniversário de São Luís. A Gente lá de casa vai
viajar no fim do mês que entra para a cidade, que é pra chegar com
tempo. Essa travessia daqui até lá é puxada. Só atravessar esse
Armazém...
Nessa hora, seu Severino Pereira Silva, que era
sobrinho do marido de dona Evarinta, interrompeu aquela conversa e tomou
a benção a dona Evarinta e saiu ligeiro para sua casa, que fica por
trás da igreja, esquina com Mestre Adão Amorim. Ia disparar, do seu
quintal, todo o seu arsenal de fogos que vinha preparando desde o começo
do festejo, enquanto todos, felizes, davam vivas a Santo Inácio.
- Não gasta os foguetes todos Severino – disse gritando o Dr.
Elisabetho Barbosa de Carvalho – deixa um tanto para recepcionarmos o
novo padre quando ele chegar.
- Não se preocupe não, Doutor – gritou mais alto seu Severino Silva – daqui até lá eu faço o dobro de foguetes.
No
mesmo dia em que foi ordenado, Newton Pereira começou se arrumar para
viajar a Pinheiro. Trazia na bagagem esperanças mil e o desejo de
reformar aquela pequena e módica igrejinha de Santo Inácio. É que ouvira
nos corredores do Seminário Santo Antônio, em São Luís, a notícia de
que uma prelazia seria instalada ao norte do Maranhão e pensou, falando
consigo mesmo.
- Quem sabe aquela igreja ampliada, talvez com
estilo greco-romano... Ah se eu conseguisse mobilizar aquele povo. Eh!
Seja o que Deus e Santo Inácio quiserem.
Encerrou aquele
monólogo com um suspiro fundo e terminou de arrumar as malas, todavia no
pensamento ficara sonhando acordado, tracejando no pensamento as linhas
imaginárias de uma nova igreja. Antes de chegar em Pinheiro, naquele
dia 9 de setembro, experimentou uma grande emoção: o povo o aguardava no
meio da estrada e ao identificarem naquele vulto preto, a batina que
trajava, montado no lombo de um cavalo, não se contiveram e correram ao
seu encontro.
Severino, como tinha prometido, detonou tantos
foguetes quantos pode em homenagem ao seu primo padre. A cidade tomou
ciência de que o padre estava chegando.
- Obrigado Severino – agradeceu o Pe. Newton
- Sua bênção primo – falou Severino fazendo um gesto de reverência, mesmo sendo ele mais velho que o primo padre.
- Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo – disse o neo sacerdote, traçando o sinal da cruz no ar.
-
Quando eu tiver um filho eu quero que o senhor seja o padrinho –
apressou-se logo em dizer Severino, querendo garantir desde logo o
privilégio de ser além de primo, compadre de um padre.
Sorrindo,
padre Newton sinalizou, positivamente, com a cabeça; afinal, não tinha
afilhados e tinha deveras apreço por aquele seu primo fogueteiro.
Amanhece
o dia 10 de setembro, a igrejinha de Santo Inácio está lotada e naquela
manhã, pela primeira vez, o jovem Newton, revestido dos paramentos
litúrgicos, se encaminha ao altar onde se encontra a pequena imagem de
Santo Inácio de Loyola.
- In nomine Patris, et filii, et Spiritu Sancti
– diz padre Newtom em um latim impecável, com uma sonoridade e timbre
de voz perfeitos, num tom austero e vibrante, com toda solenidade,
esmero e piedade, que tocam fundo na alma dos presentes, cujas vozes se
irromperam em um altivo Amén.
Mas dona Evarinta Mendes
Pereira, ladeada por seu esposo e suas filhas Maria de Lourdes e Nila,
não diz uma palavra; apenas se benze, absorta pela emoção de testemunhar
aquele momento de seu filho, que lhe faz verter lágrimas dos olhos, as
quais escorrem macias pela serenidade de seu semblante, resguardado pela
cor escura do véu que usava, contrastando tudo com o ar discreto do
sorriso de felicidade, que floresceu em seus lábios, no lugar do amén.
A
missa termina e padre Newton, após alguns dias com seus familiares,
volta para São Luís e lá aperfeiçoa ainda mais seu intelecto, expandindo
seus conhecimentos, tornando-se um grande latinista. O tempo passa e
depois de 8 anos, torna-se um grande jornalista, atuando no hebdominário
CORRESPONDENTE, jornal de orientação católica, recebendo notícias de
Roma sobre a instalação da prelazia ao norte do Maranhão, cuja sede
ainda não havia sido definida. Novamente renasce o sonho de ampliar a
antiga igrejinha de Santo Inácio e após algumas eclesiásticas tratativas
é enviado para Pinheiro, como pároco, no ano de 1937.
Outra vez
os conterrâneos do padre encheram-se de alegria e foram esperá-lo,
desta vez no Cais da Organização de Albino Paiva LTDA, na Baixinha.
Severino, que ia passando e viu o movimento correu até o padre.
- Sua bênção padre.
- Deus te abençoe. E então, cadê meu afilhado? Soube que já tens um filho.
-Tenho sim meu primo – respondeu Severino – o nome dele é Geraldo,
porém ele já tem padrinho, mas não se preocupe que Sebastiana tá no
estado interessante e daqui pro dia de todos os santos tá nascendo o
menino.
- Como tu sabes que é menino? – perguntou o padre, pasmo com tanta certeza.
- Pelo jeito da barriga de Sebastiana é menino – afirmou convicto
Severino e, com uma expressão de autoridade no assunto, continuou – a
criança mexeu foi cedo e essa dor, de vez em quando, por riba dos
quartos... Certeza que é menino. Vai se chamar Almir.
Após uma
gargalhada do padre, que achara engraçado tamanha certeza, apertaram as
mãos e Severino, cuja previsão se concretizaria depois, pegou as malas
do seu futuro compadre e levou para a casa de dona Maria de Lourdes,
conhecida como Cotinha Pereira, irmã do sacerdote e sua prima.
Todo
dia era o mesmo ritual. Terminada a missa o padre ficava na frente da
igreja, reparando a sua direita a única torre que existia. Aquele módico
templo de três portas e apenas uma torre, tosca e baixa, como quase
toda a construção primitiva, herança do século XIX, deveria ser
transformada senão jamais seria sede da prelazia. E então nessa
contemplação esquecia-se o padre pensando alto consigo.
- Estas
paredes já são centenárias, mas estão seguras. Eu aproveito esta torre e
aumento a altura dela e construo outra daquele outro lado. Com duas
torres fica imponente. Contudo pequena como é, será tolice uma nova
torre; é preciso alargar a frente para o lado da esquerda e triplicar o
comprimento – concluiu sorumbático o padre, que também não tinha
recursos.
Mas num instante de luminosidade, surgiu-lhe a ideia
de fazer a planta e mostrar para o povo, além de pedir apoio junto ao
Dr. Elisabetho, pois olhando a planta da igreja o povo iria se
entusiasmar.
- É isso! – exclamou o padre que apressadamente se
dirigiu não mais a casa de sua irmã, mas sim a sua casa, de esquina com
a praça do Poço do Mercado.
Após uma noite em claro, a planta
estava pronta: das três portas de entrada da igrejinha, somente a porta
do meio foi mantida, sendo duplicada na largura e praticamente
triplicada na altura; no lugar onde outrora ficava o topo da cruz do
pequeno templo, ficaria uma base de moldura triangular, por sob o portal
da nova porta; traçado estilo colonial; torres rebuscadas e colunas
greco-romanas, em todo interior, formando um átrio.
Padre
Newton era um homem perspicaz, destemido, com um porte físico atlético,
estatura imponente, um vigor e temperamentos de abnegada resolutividade e
praticidade. O que dizia, isso fazia, e o que planejava acontecia; um
homem centrado e seguro de si, dono de uma fortaleza interior tão
pujante que suas atitudes, por vezes, eram implacáveis como uma rocha e,
graças a isso, as dificuldades não foram capazes de detê-lo em seus
propósitos.
Mas entre aquilo que pôs no papel e a concepção do
seu sonho, durante a construção do frontispício da nova igreja, um fato
cômico – quase trágico – chamou a atenção de todos, para a prudência;
inclusive do padre, que dos livros dos tempos de seminário, passou a
exercitar na prática, literalmente.
Era o mês de outubro de
1938, o Sr. Antônio Belém, mestre de obras afamado, auxiliado pelo Sr.
Adão Amorim, que também se destacava pelo esmero, estavam à frente da
construção da igreja, sendo escolhido Adão para dar o suporte na
conclusão das torres e fazer os acabamentos das colunas greco-romanas do
átrio da igreja. Com a parede frontal da igreja na exata altura a
partir da qual as torres começariam a erguerem-se, o padre Newton, que a
tudo era atento e mesmo sem ser engenheiro ou arquiteto tinha domínio
nessas áreas, desejou subir na construção para certificar-se da solidez
dos fundamentos da torre.
Trajando sua batina preta, após
inspecionar a torre construída sob as paredes da primitiva torre do
antigo templo, resolveu inspecionar as paredes que apoiariam a nova
torre, que estava sendo erguida do outro lado. Como as paredes eram
largas em sua espessura, resultado da amarração de mais de dois tijolos,
entendeu que poderia tranquilamente ir de uma torre a outra, passando
por cima do paredão da frente que ligava as mesmas.
Nesse
momento, Adão Amorim, alguns anos mais velho que o padre e tão robusto
quanto ele no aspecto físico, deixando à parte as banhas de piaba e óleo
de baleia, que misturava com cal, para dar a liga da massa, atalhou os
passos ao padre, pondo-se a frente do religioso, com os braços abertos,
em forma de cruz.
- Padre, não pode fazer isso.
- Não pode por quê?
- É perigoso.
-
Perigoso nada. Eu consigo equilibrar-me andando no meio fio da rua,
quanto o mais em cima desta parede que tem três larguras do meio fio.
Gentileza sair da frente que eu tenho pressa.
- Não saio não, senhor – retrucou Adão Amorim.
Severino,
que ia de sua casa até o porto da Baixinha, ao passar na porta da casa
de seu Esperidião Estrela – perpendicular à igreja e de frente a praça –
ao cumprimentar aquele senhor, sentado de pernas cruzadas na calçada,
foi comunicado daquele evento – que o idoso testemunhava desde o início –
e mudou o rumo de seu caminho, correndo até o local daquela cena.
- Não facilite compadre. Desça daí – ralhou Severino bastante zangado –
ou será que o senhor vai querer arrumar tragédia? Almir tá fazendo um
ano e o senhor quer que ele fique sem padrinho justo no dia do
aniversário dele? Dia de finados foi ontem, não é hoje.
O senhor vai descer padre – disse com firmeza Adão Amorim, que concluiu – pedreiro aqui sou eu e minha palavra é que prevalece.
- Mas o padre dessa igreja sou eu – respondeu, imediatamente, padre Newton.
- Então o senhor vai ter que passar por cima de mim, porque daqui eu não saio – falou ainda mais firme Adão Amorim.
E
nesse embate de homens, que não estavam dispostos a ceder em suas
vontades e entendimentos, a discussão logo chamou a atenção dos
presentes e dos que iam passando.
Como aquele impasse
caminhava para uma indefinição, pois o padre não admitia ser contrariado
e Adão Amorim não admitia interferências em seu andaime... Depois de
tantas palavras, argumentos e contrarrazões, já que pela força, um não
podia obrigar o outro, pois ambos tinham força física equivalente e
começar se atarracarem ali, além de feio, seria um desastre.
Mas enfim uma concessão mútua põe fim ao impasse. Adão Amorim propõe:
- Eu saio da frente e deixo o senhor passar.
- Muito bem (falou o padre)
- Mas o senhor vai ter que amarrar uma corda a cintura, para qualquer eventualidade.
Para que a situação não se alongasse ainda mais; e, para evitar um
outro debate e também para não ganhar a pecha de teimoso, debaixo
daquele sol que cada vez mais escaldava a moleira... O padre considerou
uma meia dúzia de curiosos que ali se ajuntaram e então, para que aquilo
não virasse um espetáculo, com o aumento da plateia de curiosos,
erguendo os braços, permitiu que Adão Amorim o amarrasse.
Devidamente amarrado com a corda em volta do abdômen, de batina preta,
Padre Newton começou a percorrer a distância entre as duas torres, por
cima do paredão, e ao chegar na metade do caminho, onde seria colocada a
cruz da fachada, exclamou abrindo os braços em direção ao mestre Adão:
- Não te disse que eu conseguia equilibrar-me?
Ocorre
que nesse movimento feito na direção de Adão, o padre olhou rapidamente
para baixo e não se sabe se por uma tontura, ou talvez por medo da
altura; mas ao soprar do vento, que esvoaçou sua batina,
desequilibrou-se de tal forma que só não se arrebentou no chão porque,
graças a relutância de Adão Amorim, ficara dependurado pela corda, qual
pêndulo de relógio, balançando de um lado para outro ao sabor do vento.
Após alguns minutos, depois de incontidos risos de todos que
presenciarem aquela cena pitoresca, é que Adão Amorim começou a folgar a
corda até que o padre tocasse o chão.
-Eu não avisei? A obediência é santa, a teimosa não – disse Adão Amorim aquele jovem padre.
Assim, surgia naquele instante uma grande amizade para toda vida, que
ainda hoje nos dá essa sapiente lição: Devemos confiar em Deus, porém
jamais abandonar-nos a própria sorte.
__________
P.S: Padre newton foi um pinheirense além de seu tempo. Visionário, fez o futuro acontecer no presente. Nascido em 31 de julho de 1905, na fazenda Realeza, no Gama, quando Pinheiro ainda era Freguesia de Santo Inácio do Pinheiro, faleceu em 31 de janeiro de 1952 na mesma cidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário